Como eu tive oportunidade de lembrar em um artigo neste blog, o fenômeno da escravidão esteve presente também na região de São Bento e Campo Alegre. Algumas das principais autoridades municipais de São Bento – todos brasileiros – mantinham alguns escravos em suas propriedades em Campo Alegre e proximidades. Através de consultas em livros eclesiásticos e cartorários, é possível descobrir quem eram esses proprietários, assim como o nome e mais alguns detalhes da vida dos escravos que por eles eram mantidos.
O registro a seguir encontra-se no primeiro livro de casamentos do cartório do registro civil de São Bento do Sul. Ambos os noivos são filhos de ex-escravos – pois o casamento aconteceu após a abolição. De forma resumida, o registro diz o seguinte:
Aos 26 dias de fevereiro de 1889, na casa de José Affonso Ayres Cubas, no Jararaca, por ocasião de missa que lá se realizava, casaram-se Benedicto Alves Pires, de 30 anos, natural de São José dos Pinhais, filho natural de Assencia, ex-escrava, com Maria Ferreira de Paula, de 22 anos, filha natural de Paula Ferreira, também ex-escrava da finada Maria Joaquina do Nascimento. Serviram de testemunhas Pedro Alves Machado, de 56 anos, e Joaquim Ferreira de Lima, de mais ou menos 45 anos, ambos moradores no mesmo distrito de São Bento.
Nota-se que fazia pouco mais de quatro meses desde que a princesa Isabel promulgou a Lei Áurea, mas que a antiga condição social continuava sendo usada para qualificar personagens. Como em geral os escravos não eram pessoas legitimamente casadas perante a Igreja Católica, seus filhos eram tidos sempre como “naturais”, impedindo que o nome do pai seja conhecido depois de tantas gerações. É por isso que a maioria dos nomes de escravos que conhecemos na região de São Bento e Campo Alegre são de mulheres.
Entre elas, as antigas escravas Assencia (talvez Ascença) e Paula Ferreira. Sobre a primeira, não há no registro informação direta de quem fosse o seu proprietário. Ao falar de Paula, o escrivão utiliza um “também” que tanto pode se referir à condição de ex-escrava como à propriedade da falecida Maria Joaquina do Nascimento – o que nos parece mais provável.
Se assim for, e os noivos forem filhos de mães que eram propriedades da mesma mulher, o casamento evidencia a continuidade de relações entre essas pessoas mesmo após a abolição. O nome das testemunhas de casamento serve como pistas para a identificação familiar dos personagens citados nesse registro. A coincidência de sobrenomes entre eles e os noivos leva-nos a cogitar que fizessem parte do mesmo núcleo de relacionamento – isso talvez possa nos levar até o nome de seus pais, desde que novos documentos sejam cruzados.
E quem era essa senhora que possuía escravos? Maria Joaquina do Nascimento foi casada com Joaquim Antônio Alves, filho de Joaquim Alves Fontes e Maria dos Anjos. Os Alves Fontes foram uma família abastada em São José dos Pinhais, e há várias gerações dispunham de serviço escravo. Provavelmente, o esposo faleceu e então Maria Joaquina tomou posse dos escravos que a ele pertenciam. Além de Paula Ferreira e provavelmente de Assencia, sabemos que ela também possuía a escrava Josefa, que batiza um filho em São Bento no ano de 1882. Visivelmente, era uma família abastada.
José Affonso Ayres Cubas, na casa de quem se deu o casamento, também era proprietário de escravos – ao menos de uma, chamada Catharina, que teve um filho alguns meses antes da abolição. E possivelmente tenha tido mais, sem que deixassem rastro nos registros consultados até agora. O casamento aqui relatado é apenas uma pequena parte do fenômeno da escravidão na nossa região, um tema absolutamente esquecido por todos os historiadores locais, e que merece ser analisado e organizado de maneira a preencher lacunas no nosso conhecimento histórico.