A família Cavalheiro e seus escravos

Bem sucedida na Lapa, família deixou prestígio que parece ter alcançado a esposa de Antônio Kaesemodel; relação com os Fragoso pode vir do tropeirismo. 

.

Naquele domingo, Felippe Soares Fragoso iria se casar. Não passava ainda de um rapazote de 19 anos. Era o filho caçula de Manoel Soares Fragoso, que havia morrido algum tempo antes. A mãe, Marciana Maria de Marafigo, havia entrado na casa dos 60 anos. Os Soares Fragoso estavam há três décadas morando na cidade da Lapa, no Paraná. Os primeiros registros da família na cidade são de 1836. Vieram de Curitiba, onde habitavam há algumas gerações. Quem primeiro veio foi o avô de Felippe, chamado Theodoro. Já era velho na época. Na Lapa, havia sido um simples lavrador, que colhia duzentas mãos de milho e nove alqueires de feijão. Tinha de renda cem mil réis. Mas Theodoro veio a falecer pouco tempo depois, em 1839. Seu filho Manoel já era então um homem casado e com filhos na Lapa. Ao que parece, manteve a ocupação do pai como lavrador. E pôde ver o casamento de todos os filhos, menos o de Felippe.

A noiva se chamava Flora Lina Cavalheiro, e era ainda mais nova: tinha entre 16 e 17 anos. Suas origens, no entanto, apontavam para uma melhor sorte financeira que a dos Soares Fragoso. Flora era filha de João Florido Cavalheiro, dono de tropas para transporte de mercadorias, além de proprietário de escravos. E naquele domingo, 30 de abril de 1865, ao se casar com Flora, Felippe Soares Fragoso viria a se tornar o primeiro Fragoso proprietário de escravos que se tem notícia – uma evolução social espantosa, se considerarmos que a origem dos Fragoso em Curitiba aponta para índios escravizados – uma das bisavós de Felippe era Páscoa das Neves, indígena, possivelmente carijó, e escravizada.

E a escrava que Felippe parece ter recebido do sogro João Florido Cavalheiro por ocasião do seu casamento chamava-se Fortunata. Tinha 25 anos e ao menos dois filhos (Benedicto e Ambrósio), que, pela pouca idade, é de se imaginar que tenham acompanhado a mãe.  Em 1867, nasceria mais um, chamado Sebastião – é justamente o registro dessa criança que aponta Felippe como o proprietário da escrava Fortunata. Como os registros religiosos omitem o nome do pai das crianças escravas, por não ser casado, não é possível saber se junto com Fortunata veio acompanhado um parceiro.

Felippe Soares Fragoso fez parte da verdadeira comitiva de membros da família Fragoso que, partindo da Lapa, passaram a ocupar, provavelmente na segunda metade da década de 1860, a região hoje conhecida como Fragosos, na divisa entre os municípios de Campo Alegre e Piên, entre os estados de Santa Catarina e Paraná, divididos pelo Rio Negro. Ao que parece, Felippe esteve entre os que ficaram no lado paranaense. Não podemos dar garantia de que tenha permanecido com a escrava Fortunata em Piên. Isso porque ela, no ano de 1872, voltou a dar à luz uma criança, chamada Ambrósia, nascida liberta pela lei do Ventre Livre, e por ocasião do seu batismo o proprietário volta a ser João Florido Cavalheiro – que não morava em Piên, mas no lugar Doce Grande, em Quitandinha.

A aparente melhor situação financeira de Felippe Soares Fragoso, no entanto, revelada através da posse de escravos e da relação com a família Cavalheiro, pode ser um fator a explicar o sucesso de alguns dos seus descendentes. A sua filha Francelina Fragoso Cavalheiro, por exemplo, veio a se casar com o polonês Francisco André de Assis Dranka, de Araucária, e os dois se tornaram um dos casais mais prósperos da região de Fragosos. É difícil imaginar que um imigrante, que deve ter largado péssimas condições na Europa, tenha conseguido tanto sucesso em tão pouco tempo, se não concordarmos que provavelmente isso se deva também à melhor situação da família Cavalheiro.

Francelina Fragoso Cavalheiro e seu esposo são os pais de Verônica Dranka, que foi casada com o bem sucedido industrial Antônio Kaesemodel, de São Bento do Sul. A escolha de Kaesemodel não parece ter sido ao acaso, podendo  ser interpretada também como consequência do mesmo sucesso familiar iniciado um século antes na cidade da Lapa.

.

Quem era João Florido Cavalheiro

Na origem dessa história está João Florido Cavalheiro, figura que parece ter nascido alguns anos antes de 1810.  Suas origens são bastante incertas, embora uma série de fatores faça crer que pudesse ser filho de Florêncio José Leme e Maria Benigna – além da vizinhança na Lapa, do compadrio de crianças, da insistência de João Florido em dar o nome de Benigna para filhas suas (foram três), existe ainda uma curiosa repetição do radical “Flor” nos descendentes de João Florido, inclusive com o caso de uma Florência, e que se estende até a um dos seus escravos (Floriano).

Também não é conhecido o lugar e data de casamento de João Florido com sua esposa Eduvirgem de Pontes Maciel, embora imagine-se que tenha acontecido por volta de 1826. Os registros da Lapa, além de não contarem com o casamento de João Florido, tampouco esclarecem uma possível origem diversa. A partir da década de 1860, começa a aparecer em Curitiba membros de uma família “Pontes Maciel” com origem na cidade Apiaí, em São Paulo. Esta é a mesma cidade apontada como origem de uma família relacionada a um escravo de João Florido, e também a mesma cidade em que nasceu uma neta sua, chamada Florisbella da Rocha Cavalheiro. É de se cogitar, portanto, que o mistério das origens desses Cavalheiro pode ser revelado em registros da cidade de Apiaí.

João Florido Cavalheiro, como dito anteriormente, era dono de tropas, aparecendo o seu nome entre os que exerciam essa atividade no registro do Rio Negro entre 1830-1853.  Com toda a certeza, fazia viagens para o Rio Grande do Sul. Em 1847, ele aparece como intruso na Invernada de Sarandi, que fazia parte dos Campos do Bugre Morto, pertencente ao Barão de Antonina, na atual região de Pontão e Passo Fundo, no Rio Grande do Sul. Em 1861, sendo morador no Paraná, aparece também em Passo Fundo vendendo uma escrava.

No ano de 1848 (o mesmo em que a Flora, a esposa de Felippe Soares Fragoso, veio ao mundo), João Florido Cavalheiro recebeu a posse de uma área de meia légua em quadro na Lapa, no lugar que se chamava Rio Doce.  Foi o primeiro proprietário do lugar. Posteriormente, o nome foi alterado para Herval do Doce Grande (para separar do lugar Doce Fino), ou apenas Doce Grande, nome que permanece ainda hoje, atualmente pertencente ao município de Quitandinha. Foi provavelmente neste mesmo lugar que João Florido viveu os últimos dias, tendo falecido, acredita-se, na década de 1870 ou depois. A sua casa no lugar contava inclusive com um oratório, em que o padre podia fazer batizados.

.

Os filhos de João Florido e Eduvirgem 

Do seu relacionamento com Eduvirgem de Pontes Maciel, João Florido deixou os filhos:

1. José Bonifácio Cavalheiro, casado com Antônia da Rocha Filgueira. Ambos já eram falecidos no ano de 1891. Alguns filhos e netos alcançaram a região de Piên. O filho Eduardo Cavalheiro casou-se em São Bento com Emma Meister. É comum, e inclusive consta em livro, a história de que João Florido Cavalheiro, logo no início da povoação do Doce Grande, teria viajado à São Francisco do Sul e de lá trazido uma casal de alemães da família Meister (pais de Emma) para habitar o lugar. A história não confere. A família Meister imigrou para Joinville. Antes de morar no Doce, Eduardo e sua esposa foram moradores em Trigolândia. José Bonifácio Cavalheiro teve uma escrava chamada Honorata, como se verá adiante.

2. Benigna. Primeira das três Benignas que João Florido Cavalheiro teve, possivelmente faleceu pequena.

3. Rita Florida Cavalheiro. Casou-se com João Mariano Duarte. Teve descendentes nascido nos lugares Areia Branca e Cerro Verde, na época parte da Lapa, hoje Quitandinha. São os ancestrais da família “Duarte Cavalheiro”.  Eduardo Duarte Cavalheiro mudou-se para Canoinhas.

4. Miguel Galvão Cavalheiro, casado com Maria Magdalena da Rocha. Não são conhecidos, até o momento, descendentes do casal. Miguel teve uma escrava que morou na região de Piên, como se verá.

5. Benigna. A segunda Benigna mostra a insistência pelo nome, e reforça a hipótese de João Florido ser filho de Florêncio José Leme e Maria Benigna. Possivelmente faleceu pequena.

6. Benigna Maria Cavalheiro, casada com João Paulo de Santana Nunes. Tiveram ao menos três filhos na Lapa, incluindo uma Florência.

7. Jordão Napoleão Cavalheiro, casado com Joaquina Soares Fragoso, filha de Virgínio Soares Fragoso. É sabido que Virgínio Soares Fragoso foi tropeiro, e que teria feito viagens para o Rio Grande do Sul, de onde pode se cogitar que trabalhava para João Florido Cavalheiro. Os descendentes habitaram a região de Piên, especialmente o lugar Boa Vista.

8. Flora Lina Cavalheiro, a caçula, casou-se com Felippe Soares Fragoso, irmão de Virgínio, e sobre o qual não se sabe se também era ligado ao tropeirismo, de onde poderia se explicar a origem do relacionamento com Flora. Foram moradores de Piên, e tiveram descendentes também em Fragosos. Como dito, são ancestrais da esposa de Antônio Kaesemodel, com descendentes atualmente em São Bento do Sul. Os Fragoso Cavalheiro descendem desse ramo.

.

Escravos de João Florido Cavalheiro

Embora não seja possível garantir que Felippe Soares Fragoso fosse ainda proprietário da escrava Fortunata quando se mudou para Piên, é possível afirmar que, junto com a vinda de membros da família Cavalheiro para a região, vieram também os seus escravos. O tema da escravidão em Piên é totalmente desconhecido pela história local, e uma possível história sobre o assunto fatalmente precisará abordar a família Cavalheiro. De concreto, sabemos que em Piên foi batizada ainda na década de 1880 uma filha da escrava Honorata, pertencente a José Bonifácio Cavalheiro, filho de João Florido. Um outro filho da mesma escrava foi encontrado nos livros da Lapa, mas sem uma indicação possível da moradia da família. Miguel Galvão Cavalheiro foi proprietário da escrava Sebastiana, com alguns filhos registrados na Lapa também, sem que, nesse caso, seja possível fazer relação com a cidade de Piên.

Sobre o passado das escravas Honorata e Sebastiana, nada foi possível encontrar, desconhecendo-se, até o momento, de que outra escrava nasceram. Em relação à Fortunata, a escrava de Felippe Soares Fragoso, tivemos mais sorte, pois sabemos que ela era filha da negra Felippa, escrava de João Florido Cavalheiro. Fortunata teve, inclusive, um irmão chamado Appolinário Floriano Cavalheiro, cuja filha Bernardina, também nascida escrava, foi moradora do lugar Campo Novo, em Piên, tendo se casado com José Fagundes e deixado com ele descendentes que, com apenas um pouco de esforço, são possíveis de identificar até os nossos dias.

.

De tudo que foi possível descobrir até agora nos livros da Lapa sobre a genealogia desses escravos, temos o seguinte:

1. Felippa, negra, escrava de João Florido Cavalheiro. Teve:

 2.1 Apolinário Floriano Cavalheiro, batizado na Lapa aos 17.08.1834, tendo como padrinhos Romão de Lima e Maria de Lima. Casou-se na Lapa aos 05.07.1882 com Maria Rodrigues de Lima, livre, viúva de Antônio Ribeiro da Trindade, filha de Lúcio Rodrigues de Lima e Rita Rodrigues Cavalheiro.
3.1 Bernardina Rodrigues Cavalheiro, batizada no quarteirão do Herval do Doce Grande, na Lapa, aos 06.07.1862, com oito meses de idade, tendo como padrinhos João Rodrigues de Lima e Felicidade Ferreira. Casou-se com José Fagundes, filho natural de Ana Fagundes, que faleceu no lugar Campo Novo, em Piên, aos 21.07.1953, sendo sepultado no cemitério de Piên. Bernardina Rodrigues Cavalheiro faleceu no lugar Campo Novo, em Piên, aos 22.10.1956, sendo sepultada no Cemitério do Doce Grande.  Pais de:
4.1 José Fagundes Filho, casado
4.2 Virgílio Fagundes, falecido
4.3 Maria Fagundes, viúva de Joaquim Rodrigues de Lima.
4.4 Hortência Fagundes, casada com Avelino Mesquita, lavrador, moreno, nascido em Pangaré aos 27.01.1912, filho de Cândido José de Mesquita e Maria da Conceição. Faleceu no lugar Cerro Verde, distrito de Pangaré, aos 13.12.1945 Pais de:
5.1 Antônio Mesquita, nascido aos 04.02.1943, residente no lugar Lageadinho.
5.2 José Mesquita, nascido aos 15.09.1944, residente no lugar Lageadinho.
4.5 Joaquina Fagundes, solteira
4.6 Rita Fagundes, solteira
4.7 Argemiro Fagundes casado
3.2 Joaquina, nascida aos 15.09.1884 e batizada em Piên aos 22.03.1885, tendo como padrinhos Joaquim José de Ramos e sua esposa Joaquina Rodrigues Martins.
3.3 Florêncio Rodrigues Cavalheiro, nascido em Piên e lá casado civilmente aos 27 anos de idade no dia 15.12.1908 com Paulina Rodrigues de Lima, também de Piên, viúva de Pedro Baptista de Oliveira, filha de Joaquim Rodrigues de Lima e Justina Barbosa de Lima.
3.4 Cândida, nascida aos 13.07.1891 e batizada em Agudos do Sul aos 20.01.1892, tendo como padrinhos Antonio Luiz de Camargo e Francisca Rodrigues de Lima.
2.2 Fortunata, batizada na Lapa aos 17.05.1840, tendo como padrinhos … Gonçalves Pereira e Amélia Rodrigues de Almeida. Parece ter sido dada à filha Flora Lina Cavalheiro por ocasião do seu casamento com Felippe Soares Fragoso, em 1865, embora apareça novamente como propriedade de João Florido Cavalheiro no ano de 1872.  Teve com pai incógnito:
3.1 Benedicto, batizado na Lapa no dia 01.01.1861, tendo como padrinhos Joaquim José Rodrigues e Antonia da Rocha.
3.2 Ambrózio, batizado na Lapa com um mês de idade aos 28.01.1864, tendo como padrinhos Joaquim José Rodrigues e Mariana dos Santos.
3.3 Sebastião, batizado na Lapa aos 13.10.1867, tendo como padrinhos João de Souza Carvalho e Maria, escrava do Dr. Francisco José Correia.
3.4 Ambrozina, nascida liberta, batizada aos 21.04.1872 na Lapa, tendo como padrinhos Gabriel Manoel Pereira e Gracelina de Paula de Oliveira.
2.3 Antônio, batizado na Lapa aos 25.05.1851, tendo como padrinhos Manoel e Matildes.

Sebastiana Cavalheiro, escrava de Miguel Galvão Cavalheiro, teve:

1. Joanna, batizada na Lapa aos 05.07.1883, tendo como padrinhos Manoel Rodrigues de Almeida e Angélica da Rocha Cavalheiro.
2. Bernardina, nascida aos 25.09.1884 e batizada em Piên aos 22.03.1885, tendo como padrinhos Eduardo da Rocha Cavalheiro e …iana Rodrigues Martins, solteiros.
Honorata, escrava de José Bonifácio Cavalheiro, teve:
1. Claudina, batizada na Lapa aos três anos de idade no dia 24.06.1881, tendo como padrinhos Paulo de Pontes e sua mulher Maria da Conceição Barbosa.
2. Luísa, batizada na Lapa aos 20.12.1881, tendo como padrinhos Bento José do Nascimento e Maria Gabriella Gonçalves.
3. Bernarda, nascida aos 22.05.1884 e batizada em Piên aos 22.03.1885, tendo como padrinhos Appolinário Floriano Cavalheiro e sua esposa Maria Rodrigues de Lima.

Da Lapa a São Bento do Sul

Da cidade da Lapa vieram muitas familias para São Bento do Sul

Da cidade da Lapa vieram muitas famílias para São Bento do Sul

Muito pouco tem se falado sobre os primeiros brasileiros de São Bento do Sul – alguns já estavam na região quando chegaram os imigrantes, em 1873. Embora não habitassem a área central da cidade, os brasileiros eram a maioria em bairros como Mato Preto, Fragosos, Avenquinha e Bateias – na época, todos pertencentes a São Bento do Sul. Os livros de registros da Igreja Católica da cidade apontam um equilíbrio entre assentos de brasileiros e de imigrantes – talvez até em número superior para o elemento nacional.

A maior parte desses brasileiros, tidos, talvez até pejorativamente, como caboclos, vinha de São José dos Pinhais. Outros, no entanto, vinham da cidade da Lapa. A maior parte deles possui origem em antigas famílias de Curitiba e Paranaguá e, mais remotamente, nos primeiros portugueses e espanhóis que chegaram a São Paulo – além dos indígenas, que já estavam por lá.

Nos primeiros anos da Colônia São Bento, estabeleceram-se na cidade as seguintes famílias ou pessoas, vindas da Lapa, no Paraná (certamente houve mais, mas foram essas que, com ajuda do livro “Famílias Tradicionais”, do Paulo Henrique Jürgensen, e com pesquisas próprias, conseguimos identificar com certeza):

 

Anastácio José Preto, Antônio Baptista Fragoso, Belarmino Alves Pereira, Benedicto José Barbosa, Damaso Franco de Lima, David Alves Pereira, Eduardo Cavalheiro, Estelino Fernandes de Oliveira, Felippe Soares Fragoso (meu tetravô), Florentino Gomes Bueno, Francisco Antônio Maximiano, Generoso Fragoso de Oliveira (meu tetravô), Honório Alves, João Carvalho de Souza, João Baptista Fragoso, João Dias de Oliveira Santos, João Simões de Oliveira, Joaquim Lisboa, Joaquim Pinto de Oliveira Ribas, Jordão Lisboa dos Anjos, Manoel Carvalho de Souza, Manoel Ignácio Fernandes, Marculino Ferreira de Souza, Miguel Baptista Fragoso, Olímpio dos Anjos Costa, Paulo Preto de Chaves, Pedro João Ribeiro, Porfírio Carneiro de Souza, Tanargildo Alves de Miranda.

Os pais de João Florido Cavalheiro

João Florido Cavalheiro é um dos meus antepassados – meu pentavô, para ser mais exato. Era casado com Eduvirgens de Pontes Maciel, com quem teve vários filhos, todos batizados e casados na Lapa. Entre eles, minha tetravó Flora Lina Cavalheiro, nascida em 1848, e que se casou com Felippe Soares Fragoso. Da Lapa, Flora e seu esposo chegaram até a região de Fragosos, hoje município de Campo Alegre, onde deixaram descendência.

Muito pouco se sabe, no entanto, sobre o passado de João Florido Cavalheiro. As pesquisas que tenho feito não conseguiram encontrar o registro de seu casamento, que deve ter ocorrido por volta de 1826. Nos livros eclesiásticos da Lapa, não existe tal assento. Os registros de batismo dos filhos de João Florido tampouco apontam sua origem – não dizem se era da Lapa e também não dizem ser de outro lugar (como creio ser mais provável).

Apesar dessas dificuldades, creio ter encontrado algumas pistas de quem eram os seus pais. Em suma, suspeito que tenham sido Florêncio José Leme e Benigna Maria (ou Maria Benigna). Há uma série de razões que me levam a crer nessa hipótese, mas não encontrei ainda o documento definitivo que me aponte com segurança a sua filiação – razão pela qual ainda não é possível sair do campo das hipóteses, por mais prováveis que elas nos pareçam.

De início, sei que existiam algumas famílias com o sobrenome “Lemes Cavalheiro”, ou “Lemos Cavalheiro”, na região de Curitiba – e parece que no Rio Grande do Sul esse sobrenome duplo também aparecia. Elas podem ou não ter relação com os nomes dessa pesquisa. A isso se soma o fato de que, para as famílias portuguesas, nem sempre o sobrenome do pai era o mesmo sobrenome do filho. Por isso, nada impede que um Leme tenha tido como filho um Cavalheiro, conforme eu suspeito.

Não sei dizer de que forma minha suspeita tomou raiz, ou qual coincidência me chamou a atenção primeiro, a ponto de me fazer cogitar a ligação entre esses nomes. De qualquer forma, procurarei enunciar todas as características que pude perceber no decorrer da análise, independente da ordem em que tenham surgido.

Em 1825, a família de Florêncio José Leme aparece pela primeira vez nos maços populacionais da Lapa, morando no fogo 174. Tinha Florêncio 45 anos e sua esposa Maria Benigna 36. Com eles, moravam dois filhos: João, de 16 anos, e Joaquim, de 14 anos. Os escravos Dionísio (28 anos), Anacleto (24 anos) e Domingas (22 anos), além do agregado Firmino (pardo, 14 anos) completam a lista de moradores. Nota-se, portanto, que havia um João entre os filhos de Florêncio. Se eu estiver certo, se tratará, efetivamente, de João Florido Cavalheiro. Evidencia-se, ainda, um certo destaque social dessa família, possuidora de mão-de-obra escrava. Essa constatação será útil mais adiante.

No ano seguinte, 1826, há um novo registro da família de Florêncio nos maços populacionais da Lapa. Só que com uma significativa diferença: nele, não constam mais os filhos. Florêncio José Leme aparece com 46 anos e sua esposa Maria Benigna com 37 anos – ou seja, confirmando a idade apontada no registro do ano anterior. Os escravos e o agregado continuam morando com a família de Florêncio. Mas nem sinal de João e Joaquim, os filhos apontados em 1825.

Disso seria possível concluir que teriam se casado, passando a morar em domicílio próprio. Mas a conclusão não é tão simples assim, por conta da idade apontada para os dois. Ainda que se aceite que João, aos 17 anos, esteja casado, não é muito provável que um Joaquim de 15 anos também o seja – mesmo naquela época. Os registros posteriores me levam a crer que a idade dos dois está equivocada em alguns anos. Mas, por ora, atemo-nos ao fato de que o João que penso ser o João Florido Cavalheiro não estava mais morando com o pai, e que era possível que, nesse intervalo entre um maço populacional e outro, ele tenha se casado.

Lembro ainda que não foram encontrados registros posteriores de algum Joaquim que pudesse ser o filho de Florêncio – razão pela qual não se exclui também a possibilidade de óbito. Nota-se ainda que, confirmada a hipótese de casamento, seria provável que tal família estivesse entre as que foram mencionadas no maço populacional. E, no entanto, João não aparece, nesse ano, nem como filho de Florêncio e nem em domicílio próprio – muito menos Joaquim.

Em 1827, um novo maço populacional atualiza as informações a respeito da família de Florêncio José Leme. Agora, possuíam três escravos a mais. No entanto, os filhos não moravam com eles, a exemplo do que se percebeu no ano anterior. Mas nesse ano encontramos, efetivamente, o domicílio de João Florido Cavalheiro – seja filho do Florêncio ou não. Estava com 22 anos, e sua esposa Eduvirgens com 17. Já possuíam um filho, chamado José, que contava com 1 ano. E eram proprietários da escrava Felippa.

Ou seja, nota-se que um João aparece como filho de Florêncio em 1825, desaparece em 1826, e um João Florido Cavalheiro aparece repentinamente em 1827 – e morando em domicílios próximos: enquanto Florêncio e sua esposa moravam no fogo 80, João Florido morava no fogo 71.

Comparando-se as idades declaradas, no entanto, surgem algumas contradições. Tendo João Florido Cavalheiro 22 anos em 1827, teria 20 dois anos antes. E já se observou que a idade declarada para o filho de Florêncio na época foi de 16. Sabe-se que a questão das idades em maços populacionais é muito controversa, e são bastante freqüentes os equívocos a esse respeito. Ainda que a diferença pareça alta entre um e outro registro (4 anos), é preciso considerar a possibilidade de ter havido erro em algum deles. De qualquer forma, ainda que o maço populacional nos forneça o domicílio de João Florido, não é possível concluir daí que se trata do mesmo filho de Florêncio que desapareceu da sua residência.

Chama a atenção, ainda, o fato de João Florido e sua esposa Eduvirgens já contarem, naquele ano de 1827, com um filho de 1 ano – a aceitar a idade como próxima da realidade, ele teria nascido no ano anterior, o mesmo em que um João deixou de aparecer no domicílio de Florêncio.

Percebe-se também que, se a família de Florêncio José Leme era mais ou menos abastada, a ponto de possuir mão-de-obra escrava (e nesse ano, os escravos eram seis), a família de João Florido Cavalheiro também dispunha desse tipo de serviço – embora representado por apenas uma escrava.

O próximo ano apontado pelo maço populacional é o de 1829 – dois anos depois, portanto. Voltamos a encontrar os domicílios de Florêncio e de João Florido. Dessa vez, mais pertos do que antes: um ao lado do outro, sugerindo uma ligação que, se não era sangüínea como a cremos, ao menos era de relações cotidianas. Ambas as residências não sofreram grandes alterações, apenas mais uma agregada, chamada Anna, de 8 anos, passou a morar no domicílio de Florêncio José Leme.  João Florido ainda não aparece com outros filhos além de José. A sua idade, nesse ano, aparece como sendo de 24 anos – portanto, corroborando o maço de 1827. As informações e idades são mantidas no registro seguinte, de 1830 – o que leva a crer que, se de fato há equívoco nas idades apontadas, ele se dará no registro em que o João, filho de Florêncio, aparece com 16 anos. Se não há equívoco nesse ponto, trata-se de pessoas diferentes, e, portanto, a hipótese não se confirma. 

Das informações dos maços populacionais, passamos para outras, presentes nos livros da Igreja de Santo Antônio da Lapa. Não encontramos o registro de batismo de José, filho de João Florido Cavalheiro, assim como não encontramos, como dito, o seu registro de casamento com Eduvirgens de Pontes Maciel – de quem, portanto, também desconhecemos os pais. Há, portanto, a possibilidade de João Florido ter se casado em outro lugar, e batizado o filho nesse mesmo lugar desconhecido, para só então passar a morar na Lapa e figurar nos maços populacionais. Isso explicaria a ausência de registros, mas não o desaparecimento de um João entre os filhos de Florêncio.

Se não achamos o registro de batismo de José, achamos de seus irmãos e irmãs. O primeiro que encontramos é bem significativo. Em 15/11/1829 foi batizada Benigna, filha de João Florido Cavalheiro e Eduvirgens Maria, tendo como padrinhos Joaquim Pacheco da Silva e Rozanna Maria da Silva. Sabemos que era Benigna o nome da esposa de Florêncio José Leme. Naturalmente, a simples escolha de um nome para uma filha não significa uma relação de parentesco – por mais que o nome Benigna não estivesse, nem de longe, entre os mais comuns da época. De modo que, tendo parentesco ou não com a Benigna esposa de Florêncio, é possível que fosse a ela que estivessem homenageando – considerando-se ainda, nesse ponto, que as duas famílias moravam, naquele ano, uma ao lado da outra, como visto.

Dois anos depois, em 02/10/1831, foi batizada Rita, filha de João Florido Cavalheiro e Eduvirgens de Pontes. Foram padrinhos Florêncio José Leme e Joaquim Roberto. A presença de Florêncio nesse registro mostra que a relação entre as duas famílias era maior do que a simples vizinhança.

Rita, ao crescer, era conhecida como Rita Florida Cavalheiro, em alusão ao nome do pai. Em 23/06/1857, ela se casou com João Mariano Duarte. Dessa relacionamento, nasceu, entre outros, um filho que levou o nome de Florêncio Duarte Cavalheiro. Nesse ponto, não era João Florido que estava homenageando alguém próximo do seu círculo de relações, como é possível alegar no caso da filha Benigna. Era outra filha sua, e que provavelmente não iria se dispor a homenagear alguém apenas por ser conhecido de seu pai – a menos que houvesse profundas ligações entre essas famílias. Seria natural, no entanto, chamar um filho de Florêncio se este fosse o nome de um avô seu – a homenagem se justificaria. Ainda não há como sair, no entanto, do campo das hipóteses.  

Mas elas se tornam mais robustas quando percebemos que, em 29/07/1837, foi batizada outra filha de João Florido Cavalheiro e Eduvirgens de Pontes Maciel, chamada novamente de Benigna. Supõe-se que a primeira tenha falecido pequena. Nada exclui a possibilidade dos pais gostarem muito desse nome, a ponto de repeti-lo para uma nova filha que tiveram. Mas o fato é que, fosse filho ou não, João Florido Cavalheiro conhecia uma Benigna – e é difícil, nesse ponto, não acreditar na possibilidade de homenagem (caso isso seja verdadeiro, haveria ainda uma grande necessidade de homenagear, já que o nome foi dado para uma nova criança).

A hipótese ganha mais força ainda em 28/05/1842. Nesse dia, foi batizada na Lapa outra filha de João Florido e sua esposa, e que recebeu o nome, vejam vocês, de Benigna. Como se não bastasse uma terceira criança ter recebido o mesmo nome, os padrinhos desse batizado são Florêncio José Leme e Benigna Maria, praticamente comprovando a homenagem – mas ainda não o parentesco, obrigando-nos a nos conter nas conclusões.

Cremos que as duas primeiras Benignas realmente faleceram pequenas. Em idade adulta, encontramos apenas uma Benigna Cavalheiro, casada com João Paulo de Santana Nunes em 15/11/1874, também na Lapa. De modo que acabaram por aí os batizados de Benignas. A insistência de João Florido Cavalheiro e sua esposa na escolha desse nome sugere uma ligação entre sua família e a de Florêncio José Leme muito maior do que a de simples conhecidos – mas também não chega a dar certeza absoluta de nada.

De qualquer forma, é muito difícil se controlar para não dar como certa a filiação quando se percebe ainda que essa Benigna Cavalheiro que sobreviveu teve com seu marido uma filha, batizada na Lapa em 20/12/1881, e que recebeu o nome de… Florência. Se a hipótese não se confirmar, irei crer imensamente na capacidade do acaso em brincar com os genealogistas.

João Florido Cavalheiro e Eduvirgens de Pontes Maciel tiveram ainda um filho chamado João, o nome do pai. E a próxima a nascer foi minha ancestral que, ao contrário do que se poderia esperar, não levou o nome de Benigna. Flora Lina Cavalheiro nasceu em 17/10/1848. Nota-se ainda a insistência por nomes que possuem o mesmo radical: Florêncio, Florido e Flora. Se não for o bastante, ainda digo que a escrava Felippa, de propriedade de João Florido, teve um filho que levou o nome de Appolinário Floriano.

Caso não tenha me esquecido de nenhuma, essas são as evidências que (se me permitem o eufemismo) me fizeram suspeitar de Florêncio José Leme e Benigna Maria como pais de João Florido Cavalheiro. Benigna faleceu em 27/08/1843, com 45 anos, segundo o padre que fez o seu assento de óbito. E, segundo ele, não deixou testamento. O óbito de Florêncio não foi encontrado. O próximo passo será verificar se, por ventura, ele não chegou a deixar testamento. Caso eu encontre esse precioso documento, provavelmente as dúvidas se dissiparão. A menos que, ao falar da filiação, conste apenas algo como “filho João, casado”. Mas acho que o acaso não seria tão brincalhão assim.