Bem sucedida na Lapa, família deixou prestígio que parece ter alcançado a esposa de Antônio Kaesemodel; relação com os Fragoso pode vir do tropeirismo.
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Naquele domingo, Felippe Soares Fragoso iria se casar. Não passava ainda de um rapazote de 19 anos. Era o filho caçula de Manoel Soares Fragoso, que havia morrido algum tempo antes. A mãe, Marciana Maria de Marafigo, havia entrado na casa dos 60 anos. Os Soares Fragoso estavam há três décadas morando na cidade da Lapa, no Paraná. Os primeiros registros da família na cidade são de 1836. Vieram de Curitiba, onde habitavam há algumas gerações. Quem primeiro veio foi o avô de Felippe, chamado Theodoro. Já era velho na época. Na Lapa, havia sido um simples lavrador, que colhia duzentas mãos de milho e nove alqueires de feijão. Tinha de renda cem mil réis. Mas Theodoro veio a falecer pouco tempo depois, em 1839. Seu filho Manoel já era então um homem casado e com filhos na Lapa. Ao que parece, manteve a ocupação do pai como lavrador. E pôde ver o casamento de todos os filhos, menos o de Felippe.
A noiva se chamava Flora Lina Cavalheiro, e era ainda mais nova: tinha entre 16 e 17 anos. Suas origens, no entanto, apontavam para uma melhor sorte financeira que a dos Soares Fragoso. Flora era filha de João Florido Cavalheiro, dono de tropas para transporte de mercadorias, além de proprietário de escravos. E naquele domingo, 30 de abril de 1865, ao se casar com Flora, Felippe Soares Fragoso viria a se tornar o primeiro Fragoso proprietário de escravos que se tem notícia – uma evolução social espantosa, se considerarmos que a origem dos Fragoso em Curitiba aponta para índios escravizados – uma das bisavós de Felippe era Páscoa das Neves, indígena, possivelmente carijó, e escravizada.
E a escrava que Felippe parece ter recebido do sogro João Florido Cavalheiro por ocasião do seu casamento chamava-se Fortunata. Tinha 25 anos e ao menos dois filhos (Benedicto e Ambrósio), que, pela pouca idade, é de se imaginar que tenham acompanhado a mãe. Em 1867, nasceria mais um, chamado Sebastião – é justamente o registro dessa criança que aponta Felippe como o proprietário da escrava Fortunata. Como os registros religiosos omitem o nome do pai das crianças escravas, por não ser casado, não é possível saber se junto com Fortunata veio acompanhado um parceiro.
Felippe Soares Fragoso fez parte da verdadeira comitiva de membros da família Fragoso que, partindo da Lapa, passaram a ocupar, provavelmente na segunda metade da década de 1860, a região hoje conhecida como Fragosos, na divisa entre os municípios de Campo Alegre e Piên, entre os estados de Santa Catarina e Paraná, divididos pelo Rio Negro. Ao que parece, Felippe esteve entre os que ficaram no lado paranaense. Não podemos dar garantia de que tenha permanecido com a escrava Fortunata em Piên. Isso porque ela, no ano de 1872, voltou a dar à luz uma criança, chamada Ambrósia, nascida liberta pela lei do Ventre Livre, e por ocasião do seu batismo o proprietário volta a ser João Florido Cavalheiro – que não morava em Piên, mas no lugar Doce Grande, em Quitandinha.
A aparente melhor situação financeira de Felippe Soares Fragoso, no entanto, revelada através da posse de escravos e da relação com a família Cavalheiro, pode ser um fator a explicar o sucesso de alguns dos seus descendentes. A sua filha Francelina Fragoso Cavalheiro, por exemplo, veio a se casar com o polonês Francisco André de Assis Dranka, de Araucária, e os dois se tornaram um dos casais mais prósperos da região de Fragosos. É difícil imaginar que um imigrante, que deve ter largado péssimas condições na Europa, tenha conseguido tanto sucesso em tão pouco tempo, se não concordarmos que provavelmente isso se deva também à melhor situação da família Cavalheiro.
Francelina Fragoso Cavalheiro e seu esposo são os pais de Verônica Dranka, que foi casada com o bem sucedido industrial Antônio Kaesemodel, de São Bento do Sul. A escolha de Kaesemodel não parece ter sido ao acaso, podendo ser interpretada também como consequência do mesmo sucesso familiar iniciado um século antes na cidade da Lapa.
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Quem era João Florido Cavalheiro
Na origem dessa história está João Florido Cavalheiro, figura que parece ter nascido alguns anos antes de 1810. Suas origens são bastante incertas, embora uma série de fatores faça crer que pudesse ser filho de Florêncio José Leme e Maria Benigna – além da vizinhança na Lapa, do compadrio de crianças, da insistência de João Florido em dar o nome de Benigna para filhas suas (foram três), existe ainda uma curiosa repetição do radical “Flor” nos descendentes de João Florido, inclusive com o caso de uma Florência, e que se estende até a um dos seus escravos (Floriano).
Também não é conhecido o lugar e data de casamento de João Florido com sua esposa Eduvirgem de Pontes Maciel, embora imagine-se que tenha acontecido por volta de 1826. Os registros da Lapa, além de não contarem com o casamento de João Florido, tampouco esclarecem uma possível origem diversa. A partir da década de 1860, começa a aparecer em Curitiba membros de uma família “Pontes Maciel” com origem na cidade Apiaí, em São Paulo. Esta é a mesma cidade apontada como origem de uma família relacionada a um escravo de João Florido, e também a mesma cidade em que nasceu uma neta sua, chamada Florisbella da Rocha Cavalheiro. É de se cogitar, portanto, que o mistério das origens desses Cavalheiro pode ser revelado em registros da cidade de Apiaí.
João Florido Cavalheiro, como dito anteriormente, era dono de tropas, aparecendo o seu nome entre os que exerciam essa atividade no registro do Rio Negro entre 1830-1853. Com toda a certeza, fazia viagens para o Rio Grande do Sul. Em 1847, ele aparece como intruso na Invernada de Sarandi, que fazia parte dos Campos do Bugre Morto, pertencente ao Barão de Antonina, na atual região de Pontão e Passo Fundo, no Rio Grande do Sul. Em 1861, sendo morador no Paraná, aparece também em Passo Fundo vendendo uma escrava.
No ano de 1848 (o mesmo em que a Flora, a esposa de Felippe Soares Fragoso, veio ao mundo), João Florido Cavalheiro recebeu a posse de uma área de meia légua em quadro na Lapa, no lugar que se chamava Rio Doce. Foi o primeiro proprietário do lugar. Posteriormente, o nome foi alterado para Herval do Doce Grande (para separar do lugar Doce Fino), ou apenas Doce Grande, nome que permanece ainda hoje, atualmente pertencente ao município de Quitandinha. Foi provavelmente neste mesmo lugar que João Florido viveu os últimos dias, tendo falecido, acredita-se, na década de 1870 ou depois. A sua casa no lugar contava inclusive com um oratório, em que o padre podia fazer batizados.
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Os filhos de João Florido e Eduvirgem
Do seu relacionamento com Eduvirgem de Pontes Maciel, João Florido deixou os filhos:
1. José Bonifácio Cavalheiro, casado com Antônia da Rocha Filgueira. Ambos já eram falecidos no ano de 1891. Alguns filhos e netos alcançaram a região de Piên. O filho Eduardo Cavalheiro casou-se em São Bento com Emma Meister. É comum, e inclusive consta em livro, a história de que João Florido Cavalheiro, logo no início da povoação do Doce Grande, teria viajado à São Francisco do Sul e de lá trazido uma casal de alemães da família Meister (pais de Emma) para habitar o lugar. A história não confere. A família Meister imigrou para Joinville. Antes de morar no Doce, Eduardo e sua esposa foram moradores em Trigolândia. José Bonifácio Cavalheiro teve uma escrava chamada Honorata, como se verá adiante.
2. Benigna. Primeira das três Benignas que João Florido Cavalheiro teve, possivelmente faleceu pequena.
3. Rita Florida Cavalheiro. Casou-se com João Mariano Duarte. Teve descendentes nascido nos lugares Areia Branca e Cerro Verde, na época parte da Lapa, hoje Quitandinha. São os ancestrais da família “Duarte Cavalheiro”. Eduardo Duarte Cavalheiro mudou-se para Canoinhas.
4. Miguel Galvão Cavalheiro, casado com Maria Magdalena da Rocha. Não são conhecidos, até o momento, descendentes do casal. Miguel teve uma escrava que morou na região de Piên, como se verá.
5. Benigna. A segunda Benigna mostra a insistência pelo nome, e reforça a hipótese de João Florido ser filho de Florêncio José Leme e Maria Benigna. Possivelmente faleceu pequena.
6. Benigna Maria Cavalheiro, casada com João Paulo de Santana Nunes. Tiveram ao menos três filhos na Lapa, incluindo uma Florência.
7. Jordão Napoleão Cavalheiro, casado com Joaquina Soares Fragoso, filha de Virgínio Soares Fragoso. É sabido que Virgínio Soares Fragoso foi tropeiro, e que teria feito viagens para o Rio Grande do Sul, de onde pode se cogitar que trabalhava para João Florido Cavalheiro. Os descendentes habitaram a região de Piên, especialmente o lugar Boa Vista.
8. Flora Lina Cavalheiro, a caçula, casou-se com Felippe Soares Fragoso, irmão de Virgínio, e sobre o qual não se sabe se também era ligado ao tropeirismo, de onde poderia se explicar a origem do relacionamento com Flora. Foram moradores de Piên, e tiveram descendentes também em Fragosos. Como dito, são ancestrais da esposa de Antônio Kaesemodel, com descendentes atualmente em São Bento do Sul. Os Fragoso Cavalheiro descendem desse ramo.
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Escravos de João Florido Cavalheiro
Embora não seja possível garantir que Felippe Soares Fragoso fosse ainda proprietário da escrava Fortunata quando se mudou para Piên, é possível afirmar que, junto com a vinda de membros da família Cavalheiro para a região, vieram também os seus escravos. O tema da escravidão em Piên é totalmente desconhecido pela história local, e uma possível história sobre o assunto fatalmente precisará abordar a família Cavalheiro. De concreto, sabemos que em Piên foi batizada ainda na década de 1880 uma filha da escrava Honorata, pertencente a José Bonifácio Cavalheiro, filho de João Florido. Um outro filho da mesma escrava foi encontrado nos livros da Lapa, mas sem uma indicação possível da moradia da família. Miguel Galvão Cavalheiro foi proprietário da escrava Sebastiana, com alguns filhos registrados na Lapa também, sem que, nesse caso, seja possível fazer relação com a cidade de Piên.
Sobre o passado das escravas Honorata e Sebastiana, nada foi possível encontrar, desconhecendo-se, até o momento, de que outra escrava nasceram. Em relação à Fortunata, a escrava de Felippe Soares Fragoso, tivemos mais sorte, pois sabemos que ela era filha da negra Felippa, escrava de João Florido Cavalheiro. Fortunata teve, inclusive, um irmão chamado Appolinário Floriano Cavalheiro, cuja filha Bernardina, também nascida escrava, foi moradora do lugar Campo Novo, em Piên, tendo se casado com José Fagundes e deixado com ele descendentes que, com apenas um pouco de esforço, são possíveis de identificar até os nossos dias.
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De tudo que foi possível descobrir até agora nos livros da Lapa sobre a genealogia desses escravos, temos o seguinte:
1. Felippa, negra, escrava de João Florido Cavalheiro. Teve:
Sebastiana Cavalheiro, escrava de Miguel Galvão Cavalheiro, teve: