Lomnice nad Popelkou: a aldeia natal dos Fendrich

Por muito tempo acreditou-se, com base inclusive nos livros de história de São Bento, que o sapateiro e professor Friedrich/Frederico Fendrich fosse natural de Viena. É justamente essa a origem apontada para ele na lista de passageiros do barco Alert, que o trouxe ao Brasil em 1875.  Sabíamos inclusive que havia sido na capital austríaca que ele havia aprendido o ofício de sapateiro, e lá também teria conseguido uma certa cultura que o distinguiria a ponto de ser improvisado como professor  nos primeiros anos de São Bento. Mas agora sabemos que não foi lá que nasceu.

E sabemos porque o próprio Fendrich afirmou em registro de batismo ter nascido num lugar chamado Lomnitz, na Boêmia. Há mais de uma aldeia com esse nome na República Tcheca, país que abriga o atual território da Boêmia, mas imagino que agora já somos capazes de afirmar que Friedrich Fendrich nasceu na atual cidade de Lomnice nad Popelkou.

Dois mau-entendidos desfeitos

Por um acaso providencial, o registro de batismo em 1880 de Amália Josefina Fendrich, filha de Frederico, informa mais do  que Lomnitz como a cidade natal de seu pai: diz também perto de onde ela ficava. É de se concluir que também àquela época havia mais de uma Lomnitz na Boêmia, na época pertencente ao Império Austro-húngaro, e então o velho Fendrich teve a intenção de especificar ao Padre Carlos Boegershausen de qual delas exatamente ele vinha.  O padre ouviu e anotou: “Lomnitz, perto de…”. Aí entrou o primeiro mau-entendido, e que foi de nossa parte.

Ainda sem ter tido acesso aos livros de batismo da Igreja Católica de São Bento, fui informado de que o registro dizia “perto de Hochin”. Estive tão encantado por essa revelação do lugar de origem de Frederico Fendrich e certo da sua veracidade que mesmo agora, quando o acesso a esses livros é bastante facilitado,  sequer havia me ocorrido a necessidade de conferir o que estava escrito. E com essas informações fiz pesquisas e fui atraído por pistas falsas, que quase me levaram a aceitar Lomnice nad Luznici, no sul da Boêmia, como aldeia natal dos Fendrich.

Mas hoje, enquanto eu fazia um trabalho alheio à minha família, catalogando todos os batizados antigos da cidade, topei com o registro da Amália Josefina, e então pude perceber: não estava escrito Hochin.

Basta reparar na grande diferença existente entre o começo da suposta palavra Hochin e a letra H inicial utilizada coincidentemente logo no registro abaixo, que trata do batizado de uma Hermina:

Não sendo um H, a primeira coisa que me ocorreu foi que seria um I seguido de T, o que transformaria a palavra em Itochin, um nome praticamente japonês e absolutamente inexistente na Boêmia antiga e na atual República Tcheca. Reparei então que o suposto O da palavra deveria ser, na verdade, um S, uma vez que não estava ligado à letra seguinte – coisa que seria bem natural no caso de um O e bem improvável no caso de um S (observe a palavra “nascida”). Formei então uma nova palavra: “Itschin”. Aí entrou o outro mau-entendido que, felizmente, não foi meu, mas do padre.

Isso porque tudo leva a crer que tenha ouvido mal o nome dito por Fendrich, que na verdade falou Gitschin. O simples acréscimo do G inicial é capaz de resolver o mistério do local de origem, pois a atual cidade de Lomnice nad Popelkou, no norte da Boêmia, foi conhecida também como Lomnitz bei Gitschin, pelo menos até 1896. É isso que diz o Wikipedia e também é isso que mostra este selo aparentemente de 1859:

A aldeia identificada

A conclusão de que os Fendrich tem origem em Lomnitz nad Popelkou encontra respaldo inclusive na obra “Bayer in Brasilien”, escrita pelo alemão Josef Blau com base nas informações a ele repassadas principalmente por Jorge Zipperer – sobrinho de Friedrich Fendrich e que o conheceu até os seus 26 anos. Isso porque na lista com 496 lotes apresentada por Blau há também a informação sobre a origem de cada um dos seus proprietários. Nela Fendrich aparece como sendo da “Nordböhmen”, ou seja, do norte da Boêmia. É exatamente a região da Boêmia em que fica Lomnitz nad Popelkou, bem ao contrário de Lomnitz nad Luznici, a pista anterior, que ficava ao sul.

Lomnitz nad Popelkou tem apenas cerca de 6 mil habitantes. Está a 83 km da capital Praga. Fica no distrito de Semily e na região de Liberec. Há algum tempo os registros eclesiásticos de Liberec estão disponíveis no Family Search, mas a princípio ainda não estão os da região e os da época do nosso interesse. Mesmo assim, a simples descoberta da aldeia direciona os esforços de pesquisa para a região e aumentam as possibilidades de desvendar alguns outros mistérios envolvendo a família Fendrich.

Como os Fendrich foram parar lá?

Até então, ninguém parece questionar a origem do sobrenome Fendrich como sendo a Áustria. Inclusive, até hoje é possível encontrar pessoas portando o sobrenome em, vejam só, Viena. Admitindo que isso seja verdade, em algum momento alguém da família Fendrich parece ter migrado para regiões distantes como a Boêmia. Os motivos e a época dessa mudança ainda são absolutamente desconhecidos. Também não sabemos quanto tempo houve entre a migração para a Boêmia e a volta de Frederico Fendrich ao provável local de origem da família – e também não sabemos ainda os motivos para isso, que podem envolver parentes ou ser meramente profissional.

O interessante é que ainda hoje existem famílias Fendrych, com Y mesmo, habitando exatamente a cidade de Lomnice nad Popelkou. Conversei há algum tempo com um deles, mas infelizmente eles não tem informações sobre o passado da sua família. Como confirmamos que a família Fendrich de São Bento tem origem nessa mesma cidade, e como o sobrenome não é comum, só uma improvável coincidência faria com que eles não fossem do mesmo ramo. Assim, o que se imagina é que, embora Friedrich Fendrich tenha partido para Viena, e de lá para o Brasil, outros membros da família Fendrich permaneceram em Lomnitz, e lá tiveram descendentes, dos quais alguns portam o sobrenome em nossos dias.

Ainda há muito mais para descobrir sobre a origem dos Fendrich, mas a identificação exata do seu local de origem representa um avanço fabuloso na biografia da família e um impulso para que conquistas tão preciosas como essa possam vir à tona.

Abaixo, posto algumas fotografias de Lomnice nad Popelkou, conforme pude coletar através do Google Earth:

Família Fendrich – Parte II

Efetivamente, a família Fendrich, então constituída por Friedrich Fendrich, Catharina Zipperer e a filha Hedwiges, saiu do porto de Hamburgo a bordo do Barco Alert no dia 15 de maio de 1875. Na lista de passageiros do navio, que contava com 40 pessoas, Friedrich foi qualificado como lavrador, embora fosse sapateiro em Viena. Como os lavradores eram os preferidos para a imigração, devido ao árduo trabalho braçal que teriam pela frente, é possível que Fendrich tenha se deixado qualificar dessa maneira, o que aconteceu com frequência entre os imigrantes que vieram a São Bento do Sul. Em 14 de julho de 1875, os Fendrich chegaram ao porto de São Francisco do Sul e de lá se encaminharam para a Colônia de São Bento.

Fendrich, dessa forma, “num destino estranho, trocou a requintada Viena pelos pinheirais de São Bento” (BLAKE, 1966, p. 7). É curiosa a constatação das enormes diferenças entre Viena, na época um dos maiores centros da Europa, e a modesta Colônia de São Bento, que havia sido fundada há apenas dois anos e ainda sofria com a ausência de médicos, escolas e igrejas. Viena contava com aproximadamente 700 mil habitantes na época da imigração, enquanto que São Bento, em 1874, não havia chegado aos 400 moradores. Por mais que Friedrich tivesse em mente a esperança de encontrar dias melhores em solo brasileiro, não é difícil imaginar que, em muitos aspectos, o início da sua vida no Brasil, se comparado ao seu passado recente, não foi tão bom quanto se esperava.

Por conta disso, é possível que Fendrich estivesse incluído entre os imigrantes que Josef Zipperer afirma terem se decepcionado com a realidade encontrada em São Bento – muito diferente daquela propagada pelos pioneiros. A falta de meios não tornava possível o regresso à Europa. Tudo o que podiam fazer era começar a trabalhar, levando a mesma vida que os primeiros imigrantes. Foi o que fizeram, e logo também entre eles “tudo era sorrisos” (ZIPPERER, 1951, p. 18).

Friedrich Fendrich adquiriu um lote no núcleo central da cidade – ficava no prédio da antiga Caixa Econômica, atual Farmácia do Sesi. Uma pequena casa foi erguida nesse terreno, e lá a família passou a morar. No local, Friedrich montou uma sapataria e logo passou a exercer o ofício aprendido ainda em Viena. As necessidades dos colonos de São Bento, no entanto, fizeram com que Fendrich acumulasse ainda uma outra profissão, para a qual não fora treinado anteriormente: a de professor das crianças alemãs.

Leia a parte I.

Friedrich Fendrich em Viena IV

Friedrich Fendrich, ancestral de todos os Fendrich da região de São Bento do Sul, não nasceu em Viena – embora essa história venha sido repetida até hoje por alguns historiadores locais. Já tivemos a oportunidade de especular os motivos que o levaram a se mudar de Lomnitz, sua aldeia natal na Boêmia, para a charmosa capital austríaca. Também já desmentimos a história contada por José Kormann de que a esposa de Fendrich havia assistido ao incêndio do Teatro Ringtheater, em Viena. E, por fim, também já cogitamos a maneira com que Fendrich e Catharina Zipperer se conheceram na cidade.

Ferroviária no sul de Viena. A foto teria sido tirada no ano de 1875. Foi exatamente nesse ano que a família de Friedrich Fendrich imigrou ao Brasil.

Temos ocasião agora de falar sobre a existência de outros Fendrich em Viena, evidenciada pelo seu mais ilustre representante nos dias de hoje: o cantor, ator e apresentador Rainhard Fendrich, personagem de destacada popularidade na Áustria. Não significa, a princípio, que ele venha do mesmo ramo que os Fendrich brasileiros, apesar da coincidência de ser natural de Viena. Ao mesmo tempo, também não se descarta essa possibilidade: sabemos muito pouco sobre a família até agora.

Já encontrei citações de que o sobrenome Fendrich é, em sua origem, austríaco, o que naturalmente explicaria a presença de pessoas com esse sobrenome em Viena. A primeira “versão” do nome é “Fähnrich”, que vem do alemão medieval e representa o oficial mais jovem do regimento e que carrega a sua bandeira (Fähne) de identificação. Corresponde ao nosso cadete, alferes ou guarda-marinha. As diferentes formas de escrever o sobrenome sugerem a existência de famílias diversas. Rainhard Fendrich, no entanto, é da mesma região e tem o sobrenome com a mesma grafia.

Rainhard Fendrich, nascido em Viena, é um dos mais famosos astros pop da Áustria.

Por motivos ignorados, nossos Fendrich se afastaram da Áustria e migraram para a Boêmia. Não é possível dizer quanto tempo estiveram lá. De qualquer forma, a ida de Friedrich Fendrich para Viena representa uma volta da família ao seu provável local de origem. Isso nos leva a cogitar que a migração para a Boêmia fosse recente e que ainda houvesse contatos familiares em Viena. Como cremos que Friedrich foi para a Áustria sem os pais, essa hipótese ganha força. Talvez tenha se mudado para a casa de parentes.

Desconhecemos, até hoje, que Friedrich tenha tido irmãos. Se os teve, não vieram ao Brasil – e assim sendo, deixaram descendentes possivelmente também na capital austríaca. Não é de todo improvável que Viena tenha um único ramo familiar de Fendrich e que ele também inclua o Rainhard Fendrich. São hipóteses que, por enquanto, ainda não podem ser confirmadas.

A ponte Aspernbrücke, em 1875. Viena conta até hoje com membros da família Fendrich. É possível que Friedrich Fendrich tenha encontrado parentes ao ir para lá.

Rainhard Fendrich – Nasceu em Viena no dia 27/02/1955. É um dos mais bem sucedidos astros pop austríacos. Apesar do sucesso em seu país, é pouco conhecido nos outros países que falam alemão, e praticamente desconhecido nos que não falam. Uma de suas canções mais populares no país é “I am from Austria”, de 1990. Atuou em musicais na cidade de Viena e participou de vários filmes austríacos e alemães. Foi apresentador de alguns programas de TV, incluindo o “Show do Milhão” da Áustria. Recebeu, inclusive, premiação de melhor apresentador da década de 90 em seu país.

Fendrich foi casado entre 1984-2004 com Andrea Sator. O divórcio rendeu considerável publicidade. O casal teve os filhos Florian e Lucas Fendrich, que tentou a carreira musical, mas ainda sem muito sucesso. Em 2006, Rainhard foi pego pela polícia de Viena comprando cocaína. Ele admitiu que usava havia 15 anos e foi imediatamente para um clínica de recuperação de drogados – apesar disso, não se livrou de pagar uma multa. O mais interessante é que tudo isso não teve nenhuma influência visível na sua popularidade.

Friedrich Fendrich em Viena III

Já tivemos oportunidade de especular sobre os motivos que levaram Friedrich Fendrich a deixar sua aldeia natal para morar em Viena. Mas e sua esposa Catharina Zipperer, nascida em Flecken, na Boêmia, como é que foi parar na capital da Áustria?

A primeira referência de um membro da nossa família Zipperer em Viena acontece ainda na primeira metade da década de 1830, quando o pioneiro Anton Zipperer lá esteve, aparentemente por curto período, atuando como soldado. Anton também esteve em Klosterneuburg e Verona, onde ficou por dez anos e então voltou para Flecken, na Boêmia. Ou seja, não deve ter estabelecido qualquer tipo de vínculo maior com Viena.

O primeiro filho homem de Anton Zipperer, chamado Josef Zipperer, teve uma participação maior na capital da Áustria. Por volta de 1865, ele trabalhou em Viena como tanoeiro. Essa mudança parece refletir a importância que a cidade exercia economicamente no contexto da região. Pessoas, aparentemente, se mudavam para Viena a fim de conseguir melhores empregos. Também lá, Josef Zipperer se apresentou livremente ao Regimento Vienense quando estourou a Guerra Franco Prussiana, em 1866. Após a guerra, voltou para a Boêmia, e lá passou a trabalhar também como tanoeiro.

Josef voltou a Viena em 1870, depois de passar um período trabalhando como tanoeiro numa cervejaria em Eisenstein, aldeia próxima da divisa entre Boêmia e Bavária. Foi enquanto lá trabalhava, também numa cervejaria, que Zipperer teria contraído a misteriosa doença, estranhamente omitida em suas memórias, e que desencadearia a imigração da família. Ou seja, Josef lá esteve, na sua segunda passagem, por aproximadamente três anos, já que em junho de 1873 os Zipperer embarcaram rumo ao Brasil.

Espécie de bonde a cavalo existente em Viena no ano de 1872. Na ocasião, Josef Zipperer trabalhava na cidade como tanoeiro em uma cervejaria.

Esses são os registros conhecidos da família de Catharina em Viena. Tudo que podemos cogitar é que, em algum momento, ela também esteve na capital austríaca, e talvez possa ter morado lá também, na companhia do seu irmão. A maneira que a levou a encontrar seu esposo Friedrich Fendrich permanece totalmente desconhecida. Podemos supor muitas coisas, como um encontro na cervejaria de Josef Zipperer – figura que parece ser digna de muito apreço por Fendrich, já que foi o padrinho de todos os seus filhos nascidos no Brasil.

Aparentemente, Catharina e Friedrich já moravam juntos em 1873, pois quando a família Zipperer imigrou, naquele ano, o casal permaneceu em Viena, onde se casou e batizou a filha Hedwiges. A permanência na capital da Áustria, no entanto, não se prolongaria por muito tempo, pois já em 1875, depois que a família Zipperer pagou as suas passagens, os Fendrich também imigraram ao Brasil.